25.10.10

O último texto da Granta em português, cujo tema é Ambição, termina como uma bomba, pelo menos para mim que no mestrado divergi da idéia de que em arte se pode tudo (poder tudo em arte é bonito, como conceito, só que o holocausto, hiroxima, e diversos outros horrores, relativizaram terminantemente essa questão pra mim) e impressionante, fui voz solitária contra se abordar apenas a "obra em si" apartada de seu contexto histórico.
Bem, após a leitura de O falso mentiroso (memórias), uma obra de ficção na realidade, do Silviano Santiago, em que o enredo pode ser lido quase como um tratado a favor da cópia, da ambigüidade, e mais interessante, da desopilação, no que se refere à fragmentação do indivíduo em vários sujeitos na atualidade - não há crise de identidade, o narrador parece muito bem resolvido com suas imprecisões - li a reportagem da Granta, O homem de duas cabeças. Trata-se da história de um verdadeiro impostor. Muito bem escrita, por sinal, por Elena Lappin, no estilo new journalism, texto jornalístico escrito com requintes literários.
O protagonista é um tal de Bruno Grosjean, professor de clarinete, que na década de 90 publicou, assinando como Binjamin Wilkomirski, suas "memórias" Fragments, memories of a childhood 1939-1948, mais um relato sobre o holocausto que alcançou grande repercussão na época. Nele, Binjamin/Bruno narra os horrores que vivenciou durante a segunda guerra. A obra recebeu condecorações de institutos da memória do holocausto em várias partes do mundo, foi objeto de documentários, e recebeu um prêmio literário nos Estados Unidos na categoria biografia.
No entanto, especialistas sobre o tema levantaram a questão sobre a autenticidade do relato biográfico, pois como dizem, se toda mentira tem perna curta, aos poucos perceberam não só lacunas e ficção na obra, como também diferentes versões orais sobre a mesma experiência a partir dos documentários. Por um lado, Binjamin/Bruno teimava que havia sobrevivido ao holocausto, apesar da pouca idade, apesar de que não há registros de crianças que sobreviveram a Auschwitz; por outro, vários sobreviventes, que não eram crianças no período, reconheceram como autênticas várias passagens do livro. Houve até mesmo o caso de um homem que perdeu o filho num campo de concentração, que também chamava-se Binjamin, e tanto o escritor de Fragments quanto esse homem "acreditaram ser pai e filho".
O fato é que Bruno Grocejan nasceu na Suiça, de origem humilde, foi adotado por uma família abastada, e além da formação musical, também cursou história. Foi quando passou a criar seu arquivo sobre o holocausto. Segundo Lappin, o embuste fictício lembra muito a própria história de Bruno.  Fora adotado, passou alguns anos num orfanato suiço. Lugar que pode lembrar a prisão reconstruída no relato ficcional/biográfico.  Suas histórias, de Bruno e Binjamin, sobre um garoto que não sabe de onde veio, não conheceu os pais, são as mesmas.
Mesmo considerando que, descoberta a farsa, o valor literário da obra distingue-se ainda mais, até que ponto podemos julgar os méritos de uma obra ficcional que foi difundida como verídica? E muito mais grave, colaborando com a idéia de que tudo não passa de ficção, como alegam os países que são hoje sufocados por Israel.

Granta, 4: ambição. Objetiva, 2009.

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