26.4.08

Concepções



Conceição cumpre sua tarefa com destreza e, se determos um pouco mais o olhar, elegância. Destaca-se numa das inúmeras filas de caixas registradoras. Próximo ao seu rosto maduro, ela segura um pacote de lingüiças enquanto digita o código de barras com critério. Porém, seu trabalho é bem mais lento do que pode suportar a ansiedade de uma adolescente com um par de havaianas nas mãos. A jovem de tez azeitonada, corpo longilíneo e lábios cor de rosa se afoba: “Você pode passar logo isso aqui?” a jovem pergunta em tom de lamento. “Sim, claro. Assim que eu terminar de atender quem está na sua frente.” Responde Conceição, tão plácida quanto seus cabelos prateados.

Tão jovem e bonitinha pra uma puta, Conceição pensa alheada enquanto registra um imenso pacote de ração canina. Uma colega da adolescente aproxima-se espalhafatosamente e lhe entrega um telefone celular. Ela informa que um tal de Juan acabou de ligar. A garota azeitonada explode: “Puta que!” ela olha em volta, prende a respiração e completa “Tu não atendeu não, né?”.
“Qual o terror?” quer saber a colega, com um sorriso de Monalisa riscado no rosto, condensado de ironia. A adolescente assustada olha para o telefone como se fosse uma bomba.

Conceição finalmente toma o par de havaianas, registra o preço na máquina e olha para a adolescente, tão rápida quanto uma guilhotina. A garota lhe entrega uma nota de vinte reais distraidamente. Está concentrada no aparelho celular, como se este fosse um radar lhe guiando os passos. Ela apanha o par de chinelos, joga-os no chão, calça-os e segue pesarosa para a saída. Conceição a alcança com a voz:
“Ei!”
“O que é?” a adolescente vira-se imediatamente para Conceição, entre petulante e assustada. “São vinte e quatro reais de noventa centavos.”, a operadora anuncia mecanicamente. A adolescente suspira fundo e manda a colega com sorriso de Monalisa ir pedir o restante do dinheiro ao Yukko.

Pouco depois, um desconcertado asiático de aproximadamente quarenta anos aproxima-se de Conceição. Ele entrega o dinheiro delicadamente enquanto a operadora mira o jacaré impresso na pólo dele. Até que é esperta pra uma puta tão jovem, Conceição fulmina o trio inusitado. Ela os acompanha com os olhos oblíquos até a porta do supermercado. Por alguns segundos, Conceição é uma estátua indiana.

Ao voltar o rosto para a esteira Conceição dá de cara com um livro grande e bonito, de um tal Mario Vargas Llosa. Exatamente igual ao que ela havia escondido para si na seção de material escolar. Ela volta-se para o comprador do livro, observando-o longamente. Os olhos dele estão escondidos por trás do reflexo da luz sobre os óculos. Destaca-se nele os lábios, apenas maiores que os da adolescente com as havaianas. Tão bonitos e rosados esses lábios num homem. Conceição afaga a capa do livro e o registra, quase enlevada. Ela aguarda receber o dinheiro e diz:
“Ainda a pouco eu escondi um livro desses, igualzinho, na sessão de material escolar. Acho que já está acabando, por esse preço...”
“Foi exatamente lá onde encontrei este.”, responde o moço, impassível. Os olhos dele permanecem invisíveis. Conceição fixa, portanto, os lábios dele. Até que caem bem numa bicha! Ela entrega o Llosa ao rapaz.

Gravura: Bewitched de Fiona Rae

19.4.08

Sincronia ou Plágio?

Coincidências, Mero Acaso ou Sincronicidade?*, livro que eu achei deslocado do lugar num supermercado, é o relato dos diferentes níveis situacionais desse tipo de experiência que é tanto mais comum quanto mais nos atemos à sua existência: a simultaneidade dos acontecimentos. Vários estudos sobre o assunto são mencionados em diversas áreas do conhecimento. Assim como incontáveis experiências documentadas são narradas.

Menciono essa leitura ainda não acabada por uma coisa intrigante que eu soube. Margaret Forster, uma biógrafa inglesa, teve uma idéia ao derrubar um livro de sua estante. Rebecca, o volume derrubado acidentalmente, é um romance escrito por Daphne Du Maurier, octogenária na época em que o livro despencou da estante. Margaret pensou em escrever a biografia de Daphne e então entrou em contato com sua editora. Ocorre que Daphne faleceu no dia seguinte e Margaret recebeu imediatamente proposta de várias editoras para justamente escrever a biografia. Tomando as circunstâncias desse caso, essa sincronia nem é tão surpreendente assim. Mas a ressonância dela na nossa literatura é.

Pesquisando em seguida sobre Daphne Du Maurier, descobri que Rebecca, dentre outras coisas - como por exemplo, uma transposição para as telas por Alfred Hitchcock - é acusado de plágio. Segundo essa corrente, Daphne teria plagiado A Sucessora, romance da não tão lembrada escritora brasileira Carolina Nabuco. Segundo um artigo de Zahidé Muzart, Daphne Du Murier de fato teve acesso ao romance da escritora brasileira através do seu editor. Carolina Nabuco realmente enviou os originais de seu livro para a Inglaterra na época. O assunto repercutiu internacionalmente com artigos do The New York Times Review apontando o plágio.


INGLIS, Brian. Coincidências: Mero Acaso ou Sincronicidade?. São Paulo: Cultrix, 1994

11.4.08

zumbindo


I risk my reputation just to get more

Parei de fumar. Perdi umas outras vontades também. Desisti de umas pessoas e rearrangei as outras numa disposição nova. Elas se moverão sozinhas daqui a pouco e não mais saberei onde estava este ou aquela ou mesmo se existem. Por mais que eu elimine expectativas e sinta estar limpo delas, quando me habituo à sua inexistência, do nada elas voltam a brotar sorrateiramente, tão pequeninas que é preciso parar, deter-me, curvar-me, deitar até, e então extirpar os brotos com a ponta das unhas.

I might mess my clean life up

6.4.08

Vaga Alegria

Estava chovendo ainda a pouco e há muita lama e buracos nessa rua onde eu procuro socorro. Não consegui trocar o pneu furado, não pude evitar o buraco. Tem muita gente aqui, festa de um lado e do outro da rua. Tudo quanto é cor, nariz, altura e largura dançando no asfalto, ziguezagueando entre mesas, calçadas, barracas e carros.
Além dos calos secos na mão, a pele em fissura na base das unhas me causa dor. O borracheiro fica sempre um quarteirão além do que me dizem; a descamação da pele nos dedos arde. Se eu estivesse em casa eu estaria perdendo tudo isso que agora me desagrada, penso confuso. A chuva volta a cair e aí eu corro, com passadas curtas, pra debaixo de uma árvore. Como se estivesse comunicando alguma mensagem, imediatamente a chuva volta a dar trégua. Os relâmpagos deixam o céu violeta e duas fracas lufadas de vento fazem com que gotículas geladas da mangueira respinguem sobre mim. Dois pequenos gatos cor de chumbo abrem a boca em minha direção. Também estou com fome e, cada vez mais calmo, bocejo.
Mais parece que estou num mundo de dimensões menores, pois além da mangueira e dos gatos, vejo agora um homem pequeno se materializar das sombras. Ele entra debaixo da árvore e, como se não desse por minha presença, põe o sexo pra fora e mija demoradamente. Acho que eu teria contado um minuto inteiro até a urina dele cessar. Está bêbado. O desconhecido balança o sexo com violência e o barulho é tosco. Decido retomar o caminho, que nem sei mais qual é, e em resposta à minha decisão a chuva retorna me fazendo permanecer onde estou. O homem é um tipo asqueroso; está se marturbando e rindo, balbuciando frases incompreensíveis. Ele olha pra mim e diz boa noite, sorrindo. Vê-lo é penoso e ao mesmo tempo irritante, provocador. No entanto, a indiferença com que ele expõe o pênis, apertando e puxando, revela um apelo que não tem nada de sensual. Uma tentativa inadvertida e instintiva de intimidamento, talvez, ao mesmo tempo em que depõe a própria incapacidade de defesa. Apesar da embriaguês há uma profunda desolação nesse homem. Seu sorriso é de uma tristeza vasta.
Lembro do carro que deixei pra trás. Devo estar bem longe dele. Saio pra debaixo dos respingos longos e finos que desabam numa linha entre horizontal e vertical. Estou bem molhado e frio, já não sinto mais incômodo algum nos dedos. Onde tem um borracheiro por aqui? Pergunto a um motoqueiro. O único por aqui a essa hora é aquele senhor ali, debaixo da mangueira. Não me surpreendi, algo me dizia que conhecer aquele homem seria bom. Vou de encontro a ele sentindo uma vaga sensação de alegria, pálida, na verdade não chega a ser alegre, mas algo ainda pulsante. Diviso na sombra úmida a tensão no rosto do homem, o tom amarelo dos seus dentes, um vislumbre de pavor.

1.4.08

Esse Shakespeare

Que obra-prima é o homem!
Como é nobre em sua razão!
Que capacidade infinita!
Como é preciso e bem feito em forma e movimento!
Um anjo na ação!
Um deus no entendimento, paradigma dos animais, maravilha do mundo. Contudo, pra mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não me satisfaz; não, nem a mulher também...

Hamlet (tradução do Millôr)