Conceição cumpre sua tarefa com destreza e, se determos um pouco mais o olhar, elegância. Destaca-se numa das inúmeras filas de caixas registradoras. Próximo ao seu rosto maduro, ela segura um pacote de lingüiças enquanto digita o código de barras com critério. Porém, seu trabalho é bem mais lento do que pode suportar a ansiedade de uma adolescente com um par de havaianas nas mãos. A jovem de tez azeitonada, corpo longilíneo e lábios cor de rosa se afoba: “Você pode passar logo isso aqui?” a jovem pergunta em tom de lamento. “Sim, claro. Assim que eu terminar de atender quem está na sua frente.” Responde Conceição, tão plácida quanto seus cabelos prateados.
Tão jovem e bonitinha pra uma puta, Conceição pensa alheada enquanto registra um imenso pacote de ração canina. Uma colega da adolescente aproxima-se espalhafatosamente e lhe entrega um telefone celular. Ela informa que um tal de Juan acabou de ligar. A garota azeitonada explode: “Puta que!” ela olha em volta, prende a respiração e completa “Tu não atendeu não, né?”.
“Qual o terror?” quer saber a colega, com um sorriso de Monalisa riscado no rosto, condensado de ironia. A adolescente assustada olha para o telefone como se fosse uma bomba.
Conceição finalmente toma o par de havaianas, registra o preço na máquina e olha para a adolescente, tão rápida quanto uma guilhotina. A garota lhe entrega uma nota de vinte reais distraidamente. Está concentrada no aparelho celular, como se este fosse um radar lhe guiando os passos. Ela apanha o par de chinelos, joga-os no chão, calça-os e segue pesarosa para a saída. Conceição a alcança com a voz:
“Ei!”
“O que é?” a adolescente vira-se imediatamente para Conceição, entre petulante e assustada. “São vinte e quatro reais de noventa centavos.”, a operadora anuncia mecanicamente. A adolescente suspira fundo e manda a colega com sorriso de Monalisa ir pedir o restante do dinheiro ao Yukko.
Pouco depois, um desconcertado asiático de aproximadamente quarenta anos aproxima-se de Conceição. Ele entrega o dinheiro delicadamente enquanto a operadora mira o jacaré impresso na pólo dele. Até que é esperta pra uma puta tão jovem, Conceição fulmina o trio inusitado. Ela os acompanha com os olhos oblíquos até a porta do supermercado. Por alguns segundos, Conceição é uma estátua indiana.
Ao voltar o rosto para a esteira Conceição dá de cara com um livro grande e bonito, de um tal Mario Vargas Llosa. Exatamente igual ao que ela havia escondido para si na seção de material escolar. Ela volta-se para o comprador do livro, observando-o longamente. Os olhos dele estão escondidos por trás do reflexo da luz sobre os óculos. Destaca-se nele os lábios, apenas maiores que os da adolescente com as havaianas. Tão bonitos e rosados esses lábios num homem. Conceição afaga a capa do livro e o registra, quase enlevada. Ela aguarda receber o dinheiro e diz:
“Ainda a pouco eu escondi um livro desses, igualzinho, na sessão de material escolar. Acho que já está acabando, por esse preço...”
“Foi exatamente lá onde encontrei este.”, responde o moço, impassível. Os olhos dele permanecem invisíveis. Conceição fixa, portanto, os lábios dele. Até que caem bem numa bicha! Ela entrega o Llosa ao rapaz.
Gravura: Bewitched de Fiona Rae
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