Estava chovendo ainda a pouco e há muita lama e buracos nessa rua onde eu procuro socorro. Não consegui trocar o pneu furado, não pude evitar o buraco. Tem muita gente aqui, festa de um lado e do outro da rua. Tudo quanto é cor, nariz, altura e largura dançando no asfalto, ziguezagueando entre mesas, calçadas, barracas e carros.
Além dos calos secos na mão, a pele em fissura na base das unhas me causa dor. O borracheiro fica sempre um quarteirão além do que me dizem; a descamação da pele nos dedos arde. Se eu estivesse em casa eu estaria perdendo tudo isso que agora me desagrada, penso confuso. A chuva volta a cair e aí eu corro, com passadas curtas, pra debaixo de uma árvore. Como se estivesse comunicando alguma mensagem, imediatamente a chuva volta a dar trégua. Os relâmpagos deixam o céu violeta e duas fracas lufadas de vento fazem com que gotículas geladas da mangueira respinguem sobre mim. Dois pequenos gatos cor de chumbo abrem a boca em minha direção. Também estou com fome e, cada vez mais calmo, bocejo.
Mais parece que estou num mundo de dimensões menores, pois além da mangueira e dos gatos, vejo agora um homem pequeno se materializar das sombras. Ele entra debaixo da árvore e, como se não desse por minha presença, põe o sexo pra fora e mija demoradamente. Acho que eu teria contado um minuto inteiro até a urina dele cessar. Está bêbado. O desconhecido balança o sexo com violência e o barulho é tosco. Decido retomar o caminho, que nem sei mais qual é, e em resposta à minha decisão a chuva retorna me fazendo permanecer onde estou. O homem é um tipo asqueroso; está se marturbando e rindo, balbuciando frases incompreensíveis. Ele olha pra mim e diz boa noite, sorrindo. Vê-lo é penoso e ao mesmo tempo irritante, provocador. No entanto, a indiferença com que ele expõe o pênis, apertando e puxando, revela um apelo que não tem nada de sensual. Uma tentativa inadvertida e instintiva de intimidamento, talvez, ao mesmo tempo em que depõe a própria incapacidade de defesa. Apesar da embriaguês há uma profunda desolação nesse homem. Seu sorriso é de uma tristeza vasta.
Lembro do carro que deixei pra trás. Devo estar bem longe dele. Saio pra debaixo dos respingos longos e finos que desabam numa linha entre horizontal e vertical. Estou bem molhado e frio, já não sinto mais incômodo algum nos dedos. Onde tem um borracheiro por aqui? Pergunto a um motoqueiro. O único por aqui a essa hora é aquele senhor ali, debaixo da mangueira. Não me surpreendi, algo me dizia que conhecer aquele homem seria bom. Vou de encontro a ele sentindo uma vaga sensação de alegria, pálida, na verdade não chega a ser alegre, mas algo ainda pulsante. Diviso na sombra úmida a tensão no rosto do homem, o tom amarelo dos seus dentes, um vislumbre de pavor.
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